Geologia de Marrocos
Dos fósseis do Saara aos primórdios da aber tura do Atlântico
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- * Universidade de Coimbra/ MARE/ DCT
- ɫ Moulay Ismail University of Meknès/ Marrocos
Referência Duarte, L. V., Sadki, D., (2021) Geologia de Marrocos, Rev. Ciência Elem., V9(3):058
DOI http://doi.org/10.24927/rce2021.058
Palavras-chave Geologia, Marrocos, trilobites, orthoceras, goniates, crinoides, Paleozoico, fósseis, Devónico, Anti-Atlas, Proterozoico, Alto Atlas, carbonatos, Sinemuriano, Jurássico Inferior, tectónica, Jurássico, Cenozoico, Saara, Vale das Rosas
Resumo
Finalmente, e de novo, no deserto! Agora, no outro lado do Saara. Talvez melhor, “às portas” deste imenso deserto, na ponta mais ocidental dos Atlas, se tivermos o Chott el Djerid (Tunísia) como referência, a região das rosas do deserto1. Tal como aí, estamos bem perto da fronteira com a Argélia. Erfoud é o principal centro urbano de onde se organiza grande parte das expedições a Merzouga e ao seu Erg Chebbi com as suas dunas pintadas de um amarelo torrado a alaranjado, que ferventa o nosso olhar (FIGURAS 1 e 2). Poderia ser mais um deserto de areia, no entanto as diferenças são evidentes quando comparado com o Wadi Rum na Jordânia2. Mas o Erg Chebbi foi o primeiro a ser descoberto e as duas seguintes incursões aqui realizadas parecem ainda longe de “esgotar o filão”. Bom, o que seria se tivéssemos tido a oportunidade de assistir, ao vivo, ao concerto “Water for Life Merzouga Morocco 2006”, de Jean-Michel Jarre! Um visionário da música eletrónica e das “sonoridades do mundo”, que nos transportam para as belezas naturais da Terra, como são as sagas Equinoxe ou Oxygène. O problema da água que, em Merzouga, e independentemente das alterações climáticas, é um bem demasiadamente escasso desde há alguns (poucos) milhares de anos! Mas basta conhecer bem os mecanismos físicos da Terra e não ir mais longe do que o Holocénico para entender que há cerca de 6-7 mil anos, o clima no Norte de África era bem diferente do atual, significativamente mais húmido3.
A propósito dos milhares de anos de ambiente árido, este manto de areia holocénica cobre terrenos muito antigos, de origem marinha, que remontam ao Paleozoico4. Ainda melhor do que isso, “escondem” verdadeiras preciosidades paleontológicas e que tornaram esta região mundialmente conhecida. A realçar, por exemplo, e dentro dos mais “triviais”, os registos emblemáticos de fósseis de trilobites, orthoceras, goniates e crinoides! Para não mencionar outras ocorrências, muito mais raras, que deliciam o especialista e despertam toda a atenção do mundo dos curiosos. Erfoud é um lugar de feira permanente de fósseis e de minerais, muito maior que em Midelt5, sendo um lugar de exportação para todo o planeta (FIGURA 3A))6. Em pleno deserto! Algo que pode ser facilmente confirmado nas várias feiras de minerais e fósseis que se realizam em Portugal, através das bancadas repletas de belos exemplares paleontológicos com origem nesta região de Marrocos. Na verdade, algumas peças são tão perfeitas quanto falsas, tal é a arte e o savoir faire bem marroquino. Mas o melhor de tudo, para o geólogo, é ele poder descobrir alguns dos afloramentos clássicos desta região, ligeiramente destapados de areia (FIGURA 3B)), e inundar a máquina fotográfica de belas imagens paleontológicas, pois aqui, o martelo serve mesmo é para escala (FIGURA 4).
Poderíamos, e a recomendação é mesmo essa, permanecer mais (bastante!) tempo por Erfoud e Merzouga. Apesar da morfologia baixa, os recantos são mais que muitos, a exigirem espaço para a exigida contemplação. Mas as palavras podem esgotar este pequeno texto e ainda há muito para percorrer e observar. Vamos passar, na sua porção setentrional, pelo Anti-Atlas, a terceira grande morfologia atlásica, pois o grande objetivo é atravessar novamente o Alto Atlas e chegar a mais uma das cidades imperiais de Marrocos, Marrakech, incontestavelmente, a mais atrativa de todas! Ficará de fora dos três relatos marroquinos a capital Rabat, a cidade em falta com essa mesma etiqueta, mas a ausência de uma geologia a condizer, assim o exige.
O Anti-Atlas, que se desenvolve a ocidente de Erfoud, é geologicamente o mais complexo de todos os Atlas, com rochas maioritariamente “cristalinas” (magmáticas e metamórficas), sendo igualmente o de registo mais antigo (com litologias do Proterozoico)7. Ao olhar para os diversos relevos, estes são menos tabulares e muito mais irregulares, faltando frequentemente o traço da estratificação que caracteriza as rochas sedimentares. Num ápice, estamos novamente na fronteira sul do Alto Atlas, em Tinherir. E a escolha não é fácil, já que os motivos geomorfológicos retomam a excecionalidade. As rochas duras da base do Jurássico voltam a aparecer e a tectónica a fazer os seus estragos, complicando a análise estratigráfica8. É logo o caso do Thodra, mais um oued com a sua imponente gorge (feita em carbonatos do Sinemuriano, Jurássico Inferior), completamente desproporcionada por comparação à estreiteza do rio, com um frugal caudal que corre lá em baixo. Para jusante, as suas margens vão intersetando uma imensidão de unidades do Jurássico ao Cenozoico, sendo recortadas por todos os tipos de falhas – não esquecer a orogenia alpina –, dificultando ao máximo o trabalho de cartografia geológica, que aqui não é para novatos. Só mesmo visto! De mais fácil leitura, e proporcionalmente impactante, é o percurso do Thodra quando deixa o Atlas e se espraia junto à frondosa cidade de Tinherir (FIGURA 5).
Tal como o Ziz, o Thodra não tem alternativa a não ficar pelo deserto. Assim como o Dadès, outro oued, que nos obriga a fazer uma nova subida pelo Alto Atlas, um pouco mais extensa, e tudo para ficarmos novamente de “boca aberta”. Não há como não fomentar a documentação iconográfica, o que nos permite poupar nas palavras (FIGURAS 6 e 7). E seguir em direção a Ouarzazate, a cidade cinematográfica do norte de África, onde logramos aceitar o repto feito no Saara tunisino e tomar um Chá no Deserto1. Ou rever Babel, com o mesmo ator de Sete anos no Tibete, que tem o Atlas na própria história, assim como os cenários da respetiva gravação. Mas, antes disso, e de seguirmos para a etapa final, que nos levará até Marrakech, nada melhor do que sentir a atmosfera reinante em Kelaat-M’Gouna, bem no centro do indescritível Vale das Rosas, cujas essências aproveitam bem a água do Dadès.
O caminho inverso ao longo do Alto Atlas, agora de sul para norte, a partir de Ouarzazate, em nada tem a ver – geologicamente falando – com a transversal Midelt - Errachidia9. O que é fantástico pela novidade! Muito mais heterogéneo quanto à natureza litológica e idade, também bastante mais acidentado, que reflete a grande geodiversidade existente. Isso permite uma abordagem mais descomprometida quanto à temática geológica, em função do que se pode observar. Iniciamos a viagem na fotogénica e cinematográfica Aït Benhaddou, o pequeno povoado dos Kasbahs, que tem servido de cenário a muitos clássicos do cinema, entre os quais o Lawrence da Arábia2 – e, como o mundo é mesmo pequeno, um filme que teve a direção musical de Maurice Jarre, o progenitor de Jean-Michel Jarre. Enquadrada na perfeição pela envolvência geológica (FIGURA 8), que mostra uma sucessão de sedimentos finos, lutíticos, de cor esverdeada a acastanhada, com finas, mas abundantes intercalações de gesso. Uma característica mineralógica que domina estas unidades datadas do Miocénico em grande parte de Marrocos10. Assim como em toda a região peri-mediterrânica. Estes evaporitos, associados a (paleo)ambientes quentes e áridos, são o resultado da intensa variação climática, ocorrida nesta porção do globo por volta dos 5-7 milhões de anos, ou seja, durante o Messiniano. A bem dizer, esta é uma designação histórica que provém da cidade siciliana de Messina, e que mostra este tipo de sedimentos evaporíticos. Ora, esta fase climática terá dessecado grande parte do Mediterrâneo: a conhecida crise de salinidade messiniana11, 12. As imagens do deserto salgado tunisino1, em mais um exercício do Atualismo, podem ajudar muito à perceção do que foi grande parte do Mediterrâneo durante esta crise paleoambiental. Porém, em matéria de alterações climáticas, mais globais, o melhor vem mesmo a seguir.
Alguns quilómetros para norte, entre Agouim e Tiourjdal, subimos no relevo, mas descemos na tabela cronostratigráfica, nomeadamente em torno da passagem entre o Triásico e o Jurássico, um dos cinco intervalos de maior extinção em massa, ocorrida em toda a história da Terra. E uma das razões parece estar no impressionante registo de rocha basáltica - cerca de 3 centenas de metros de espessura -, que aflora nestas redondezas (FIGURA 9). Evidências da intensa atividade vulcânica que antecedeu a génese do Oceano Atlântico - o CAMP - Central Atlantic Magmatic Province -, com as consequentes implicações ambientais. Considerando a localização geográfica desta província magmática, Marrocos constitui, sem a mínima hesitação, uma das principais referências no estudo deste evento à escala global13, 14. Tal como a região da Nova Escócia, no Canadá mais oriental15.
Chegados ao ponto, literalmente, mais alto de todo o percurso, atingimos o coração do Alto Atlas e, inversamente, continuamos a descer no tempo geológico. Em Tizi N’Tichka, já no início da descida para Marrakech, observam-se as rochas mais antigas do Maciço, entrando-se numa associação complexa de rochas ígneas e metamórficas, datadas do Pré- -Câmbrico e da parte inferior do Paleozoico. A paisagem é tal, que a cor das casas se confunde com o cinzento das rochas metamórficas que as rodeiam (FIGURA 10A)). O resto da estrada é recheado de outros tantos motivos, com repetições de unidades e consequentes atributos tectónicos. A meio da encosta, em Toufliht, sobressai na paisagem o vermelho dos terrenos triásicos, agora de natureza siliciclástica (FIGURA 10B))16.
A fazer lembrar muito, mas com as suas diferenças sedimentológicas, o grès à rouge brique do Triásico português. Do famoso Grupo Grés de Silves17, nome batizado por Paul Choffat, o geólogo suíço que foi o percursor no estudo do Mesozoico em terras lusas. Não fugindo dessas tonalidades, e porque estamos mesmo no fim deste grande périplo por Marrocos, só falta chegar a Marrakech. A intitulada “cidade vermelha”, e mergulharmos no bulício da tão inquietante quanto fascinante Praça Jemaa-el-Fna. Preenchidos pela magnífica e imparável geologia marroquina e prontos para uma boa tajine. Insha’Allah!
Referências
- 1 DUARTE, L. V., Do Atlas ao Saara, Rev. Ciência Elem., V5(3):041. (2017). DOI: DOI: 10.24927/rce2017.041.
- 2 DUARTE, L. V., Tesouros Geológicos da Jordânia, Rev. Ciência Elem., V6(4):078. (2018). DOI: 10.24927/rce2018.078.
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- 4 MICHARD, A. et al. Continental Evolution: The Geology of Morocco, Chapter 3: The Variscan Belt, Lectures Notes in Earth Sciences, 116, 65-132. 2008.
- 5 DUARTE, L.V. & SADKI, D., Geologia de Marrocos I - Retratos do Sul do Rife ao Médio Atlas, Rev. Ciência Elem., V9(2):035. (2021). DOI: 10.24927/rce2021.035.
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