Mergulhando no Oceano Índico II
Das feições vulcânicas da Maurícia aos granitoides das Seicheles
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- MARE | DCT-FCT/ U. Coimbra
Referência Duarte, L. V., (2023) Mergulhando no Oceano Índico II, Rev. Ciência Elem., V11(2):024
DOI http://doi.org/10.24927/rce2023.024
Palavras-chave
Resumo
A passagem pelas Maldivas1 deixou as suas marcas. De tal forma que o retorno aos “mergulhos” no Índico não se fez esperar. Uma espécie de chamamento por um oceano que se acerca apenas de um dos polos e que expõe uma associação de ilhas e de arquipélagos, de nome sonante que, no seu conjunto, mostram uma geologia bastante diversificada. Tão complexa quanto fascinante! Os lugares para descobrir são vários, o que, somado à distância a que se encontram, torna a escolha muito difícil. Ficam de fora, por exemplo, a desproporcionada “super ilha” de Madagáscar e a pequena Reunião, ainda de jurisdição francesa. Em compensação, abraçamos neste texto quer a Maurícia, a outra “grande” ilha do Arquipélago de Mascarenhas, quer as icónicas ilhas Seicheles, todas elas forradas de uma vegetação exuberante. Porque o tempo foi curto, as visitas foram cirúrgicas, mas permitiram olhar, sentir e desfrutar o principal do contexto geológico e das suas principais ambiências. Depois das ilhas carbonatadas do país mais raso de todo o planeta, vamos palmilhar o mundo vulcânico, a geologia que domina a Maurícia, que é a expectável em ambiente oceânico profundo. Mas, o melhor de tudo pela sua originalidade, são mesmo as paisagens graníticas das Seicheles, registos estranhos e algo impensáveis de encontrar no meio de um oceano. Inseridas na porção mais ocidental do oceano Índico, a Maurícia e as minúsculas Seicheles ocupam as extremidades de um largo plateau marinho, pouco profundo, de forma curvilínea, bem desenhado no Google Earth (FIGURA 1). Apesar desta aparente uniformidade morfológica, a geologia vem demonstrar que a história é bem diferente e complexa.
Nas ilhas Maurícias, a ideia é ficar apenas pela sua ilha principal, a Maurícia. Um paraíso ornitológico, que possui o último registo do extinto Raphus cucullatus, o familiar dos pombos vulgarmente conhecido como Dodô2.
De origem exclusivamente vulcânica, e maioritariamente composta por rochas dessa natureza, a Maurícia é bordejada por basaltos do Paleocénico, ou seja, do início do Cenozoico, e por recifes de coral, já que a temperatura da água, a cerca de 20˚ de latitude, facilita tal existência (FIGURA 2).
Apesar do contexto mais antigo, a origem das primeiras lavas que se terão erguido acima do nível do mar, e que terão formado o “esqueleto” da ilha, remontam aos 8—9 milhões de anos (Miocénico), valores comprovados a partir de diferentes métodos de decaimento radiométrico3, 4. O rigoroso trabalho de datação abasoluta remete-nos para a velha história de que em geologia não é sempre mais milhão, menos milhão de anos. Sendo uma ilha muito recente, esse erro fará a sua diferença.
Daí, até à atualidade, terão sido várias as fases de evolução geológica, tal como atestam os estudos petrológicos e geoquímicos realizados e publicados em revistas de referência5. A cor negra ou acastanhada dos solos é demonstrativa da riqueza em rochas básicas: em torno da rainha destas rochas, o basalto, onde abundam os minerais ferromagnesianos, piroxenas, anfíbolas e olivinas. Mas, como se deve imaginar, também é possível encontrar outros tipos de rochas extrusivas como os traquitos, rochas muito mais alcalinas e leucocráticas ou seja, consideravelmente mais siliciosas que os basaltos. Com o modelo de cristalização — ou seja, de génese dos minerais —, a seguir, como convém, a Série de Bowen. O mais interessante de tudo é que a génese desta ilha está relacionada com uma pluma mantélica, que esteve sequencialmente na origem das restantes ilhas do Arquipélago de Mascarenhas —, que inclui também a ilha de Rodrigues, que compõe a República da Maurícia. Mais ainda, toda esta sucessão de eventos vulcânicos parece remontar ao tempo das famosas Deccan Traps6, as gigantescas espessuras de basaltos originadas nestas latitudes, há cerca dos míticos 65 milhões de anos (limite Cretácico–Paleogénico), e que a tectónica de placas movimentou até ao centro-oeste da Índia. Com tanta rocha extrusiva, e num ambiente tão tropical, de extrema humidade, são conhecidos os efeitos na vegetação, que tendem a ocultar muitas das morfologias típicas do ambiente vulcânico. A começar pelos próprios aparelhos vulcânicos, que deram origem à estruturação da ilha3. Mesmo assim, basta circular pela parte sul da ilha para nos maravilharmos com a sua colossal diversidade geomorfológica e com alguns aspetos demasiadamente singulares. São propostos quatro locais de visitação.
O primeiro deles, a Grand Bassin, que não é mais do que uma cratera vulcânica convertida num lago, preenchido por água doce (FIGURA 3A)). Também conhecido como Ganga Talao, o lugar de culto hindu mais importante da Maurícia, com a sua envolvência preenchida de símbolos e de templos religiosos. Há a realçar que quase metade da população desta ilha professa o hinduísmo.
Um pouco para oeste, as gargantas do Black River (FIGURA 3B)) que deram origem a um parque nacional, com múltiplos lugares de interesse.
Entre eles, uma série de quedas de água, a maioria delas bem camufladas pela vegetação, como é o caso da Chamarel Waterfall, a mais fotogénica de toda a Maurícia (FIGURA 4).
Dizem os geólogos, estudiosos deste lugar, que a sucessão vulcânica estratiforme, aqui registada, terá resultado de dois fluxos de lava, o último dos quais datado entre os 3,5 e 1,7 milhões de anos. Tudo muito recente.
Para completar a quadra, a visita às Seven Coloured Earth, onde se observam basaltos da mesma idade do último evento magmático de Chamarel. Agora, com um fenómeno muito peculiar de coloração do solo, que resulta da alteração das rochas vulcânicas básicas, como o basalto, em óxidos e hidróxidos de ferro — também de alumínio7 — (FIGURA 5). As rochas, que têm na sua constituição os minerais mais propícios à alteração, os ferromagnesianos acima mencionados, um fenómeno que é também favorecido e ampliado pelo clima tropical húmido, que vigora por estas paragens do planeta. Um solo, está visto, que não propicia a fixação da vegetação.
Sem evidências de grandes depósitos carbonatados, em virtude do relevo da ilha, da sua tenra idade e da tectónica, os reflexos da sedimentação calcária fazem-se sentir apenas nas zonas costeiras, em especial em determinadas zonas de praia, resultantes dos efeitos de tempestades tropicais que, por vezes, se fazem sentir nesta região do globo e que provocam os seus estragos na barreira coralífera que bordeja a ilha (FIGURA 6).
Uma dezena e meia de graus mais a norte, já nas imediações da linha equatorial e chegamos às ilhas Seicheles, que contabilizam mais de uma centena. Estamos no ventre do Índico e a grande maioria das ilhas ou é granítica ou carbonatada! As mais rasas, e muito à semelhança das Maldivas, são de natureza coralífera, aproveitando as altas temperaturas da água do mar, que favorece a sedimentação carbonatada, a começar pela acumulação dos seus esqueletos calcários. No lado oposto, situam-se as ilhas mais proeminentes do ponto de vista morfológico, sendo igualmente as mais extensas, como as visitadas Mahé, Praslin e La Digue. O olhar fotográfico orienta-se inevitavelmente para as tão apelativas massas rochosas dos guias turísticos que provocam os mais curiosos. De natureza granítica… em pleno oceano?! Nada como “ver, para crer”, em especial as diversas Anses de La Digue, sem dúvida, as mais impactantes e empolgantes, mesmo com a abóbada celeste cheia de nuvens (FIGURAS 7 e 8). Mas também pela tipologia das rochas, compostas essencialmente por granitos e outras variantes granitoides, de cor cinzenta a rósea. Normalmente de grão médio a grosseiro, os granitos mostram os seus constituintes habituais, o quartzo e feldspato (FIGURA 9A)), podendo associar-se outros minerais, os acessórios, como a biotite e a hornblenda8.
A idade destas rochas plutónicas, então, é uma surpresa. Geologicamente falando, nos antípodas da Maurícia! Rochas bastante antigas, que remontam ao Pré-Câmbrico, com cerca de 750 milhões de anos (Neoproterozoico). Quando a atual Seicheles ocupava uma posição marginal do supercontinente Rodínia. Rochas que ao longo de todo este tempo não sofreram qualquer deformação e metamorfismo9. Uma idade que remonta ao Período Tónico (1000 e 720 Ma), que antecede exatamente o Criogénico (720 aos 635 Ma), intervalo de tempo em que a Terra terá estado em grande parte coberta por gelo: a famosa teoria do Snowball Earth. O Período do Proterozoico que engloba duas grandes fases de glaciação, a sturtiana (717 a 660 Ma) e a marinoana (650—632 Ma)10. No seu conjunto, a que terá sido a fase mais fria, de maior glaciação de toda a história da Terra, com evidências sedimentológicas registadas em várias partes do globo semelhantes às observadas na Chapada Diamantina11. Resumindo, uma sobreposição de eventos em termos de geodinâmica interna e externa. Ou seja, a seguir à génese dos granitoides das Seicheles, formados em profundidade, a superfície da Terra estaria, em grande parte, coberta de gelo.
Mas, o que mais desperta a atenção nas Seicheles é o contraste com todo o ambiente vulcânico do fundo marinho do Índico, de idade muito mais recente e que envolve o arquipélago. Reflexos disso, são as diabases que frequentemente recortam os corpos graníticos, de idade em tudo semelhante à das Deccan Traps acima referidas. Só que a história é muito anterior e a tectónica de placas, a teoria que revolucionou toda a geologia, é que estará na origem da configuração atual. Os granitoides das Seicheles são idênticos — em idade, petrológica e geoquimicamente falando —, a corpos magmáticos encontrados em Madagáscar e na Índia Ocidental9. O que permite identificar as Seicheles como um microcontinente, que anda à “deriva” em pleno fundo marinho, e que resultou do desmembramento da placa indiana, e esta do supercontinente Gondwana12, 13. Que interessante e soberba história geológica! Algo simplificada, pois a geologia nestes domínios é bem complexa, mas com belas interpretações, bem ao nível da admirável paisagem de Anse Source d’Argent.
Para complementar este circuito geológico, existem muitos outros pontos de atração, alguns exclusivos deste arquipélago. Em Praslin, por exemplo, impõe-se uma visita à reserva natural do Vallée de Mai, uma floresta bem cerrada, onde prolifera o coco-do-mar, quiçá o mais indiscreto do planeta (FIGURA 9B)). Bem como um conjunto de outras plantas e animais endémicos, atributos que granjearam a chancela de Património da Humanidade da UNESCO. Na minúscula La Digue, terra também afamada pela baunilha, o contacto com uma colónia de tartarugas gigantes, originárias do atol de Aldabra — um outro lugar do outro mundo que ficará para outra ocasião —, é outra paragem que se exige neste roteiro. Sempre com os granitoides no horizonte ou, garantidamente, de baixo dos nossos pés (FIGURA 10).
Em poucas palavras, e depois das Maldivas, estão revistos alguns dos aspetos geológicos de outras duas pérolas do oceano Índico, e do planeta, e que completam uma espécie de trilogia geográfica. A Maurícia e as Seicheles. E tão diferentes que elas são.
Referências
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