Do Paleozoico dos Picos da Europa ao Jurássico da Costa (Asturiana) dos Dinossauros
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- * U. Coimbra, DCT e MARE
- ɫ MUJA
Referência Duarte, L. V., García-Ramos, J. C., (2023) Do Paleozoico dos Picos da Europa ao Jurássico da Costa (Asturiana) dos Dinossauros, Rev. Ciência Elem., V11(4):048
DOI http://doi.org/10.24927/rce2023.048
Palavras-chave
Resumo
A boa geologia está obviamente por todo lado. Por essa razão, desta vez não necessitamos de ir para longe. Ficamo-nos, então, pelo norte da Península Ibérica, propondo uma visita pela Província de Léon e pelo Principado das Astúrias (FIGURA 1). Neste último, com especial ênfase na sua zona costeira. Não esquecer que esta é a terra da sidra, da fabada e do Queijo Cabrales. Para um geólogo, mais um bom enquadramento adicional. Neste percurso vamos à boleia de sons com reminiscências celtas, entre a gaita asturiana de José Ángel Hevia e a do vizinho, galego, Carlos Nuñez. Entre as semelhanças, diferentes sonoridades e performances, tal como a geologia pelo norte de Espanha que é completamente distinta, se compararmos a Galiza com grande parte das Astúrias. Basta considerar a “velha”, mas ainda funcional diferenciação morfoestrutural da geologia ibérica de Lotze. Tendo como ponto de partida Oviedo, a interessante capital das Astúrias, estamos claramente a oriente da Zona Astúrico Ocidental-Leonesa, ou seja, na primeira unidade do chamado Maciço Hespérico: a Zona Cantábrica1.
Caracterizada por terrenos paleozoicos e por grandes relevos, onde os processos de deformação terão sido bem marcantes (FIGURA 2), esta região ganha particular destaque pelo seu conhecido e grandioso Carbonífero. A começar, desde logo, nas imediações de Oviedo, pelos depósitos de carvão, em virtude das imensas reservas que aqui se acumularam durante este período e que deram azo às múltiplas explorações mineiras existentes na região. A dimensão do registo é tal, que se define neste território a designada Bacia Carbonífera Central das Astúrias2. Explorações que fazem hoje parte da história, mas que se encontram muito bem documentadas na paisagem, ao longo da depressão onde se localiza a cidade de Langreo, através de uma série de torres metálicas, inconfundíveis, a denunciarem a presença de poços mineiros. A importância é tal que algumas instalações mineiras foram convertidas num interessantíssimo Ecomuseu, do Vale do Samuño, de valiosíssimo interesse geológico, cultural e sociológico (FIGURA 3). A vida difícil de mineiro, e que ajudou, em muito, à economia dos países, ao seu desenvolvimento. Uma realidade que rivaliza hoje com o conceito de sustentabilidade. Como tal, ainda mais tratando-se de carvão, a exploração deste recurso já passou mesmo à história. Aliás, o Carbonífero, exatamente o mesmo termo do agora, “informal”, Carbónico (coisas da Estratigrafia), e já visitado nas arribas de Joggins, no outro lado do Atlântico3, foi um tempo de grande soterramento de matéria orgânica vegetal, generalizado a todo o planeta, resultando no intervalo da história da Terra mais importante de acumulação de carvão4.
Está bem de ver qual a origem do nome deste Período, com 60 milhões de anos, que assistiu à grande proliferação das gimnospérmicas. Todo este amplo crescimento do mundo vegetal terá potenciado, em proporcional medida, um aumento da fotossíntese, com impactos claros no somatório dos gases atmosféricos. A fazer jus em diversos proxies, há cerca de 300 milhões de anos a atmosfera terrestre terá sido a mais oxigenada de sempre, com concentrações quase duas vezes superiores às atuais5. Ao invés, e por compensação, a concentração do dióxido de carbono na atmosfera terá sido das mais baixas. Um fenómeno claramente favorecido pela grande quantidade de matéria orgânica, que se acumulou através dos diferentes tipos de carvão na litosfera. Mais um ótimo exemplo de entendimento de como funcionam os diversos subsistemas terrestres.
Encontramo-nos também perto do Parque Nacional dos Picos da Europa6, uma das grandes cadeias montanhosas de Espanha. Curiosamente, uma área igualmente repleta de rochas datadas do Carbonífero, mas bem diferentes das da vizinha bacia carbonífera. Em vez de sedimentos de origem continental e deltaica (litoral), de natureza carbonosa, depositaram-se aqui espessas sucessões de carbonatos— bastante mais do que 1 quilómetro de sedimentos, gerados num ambiente de plataforma marinha7. As duas orogenias fanerozoicas que afetaram esta porção do globo, tanto a varisca como a alpina, fizeram tudo o resto (FIGURA 2). Paralelamente, com tanto calcário e altitudes tão elevadas, são férteis na paisagem evidências geomorfológicas associadas, numa combinação perfeita, entre carsificação (FIGURA 4) e a ação da criosfera. Porque aqui fez mesmo muito frio na história mais recente da Terra, durante o Plistocénico. De facto, os Picos da Europa são um paraíso para os estudiosos do Quaternário, já que algumas das fases de alteração climática plistocénicas estão aqui muito bem preservadas8. Contrastando com o tempo em que estas rochas se formaram. Sim, estes calcários do Carbonífero, devido ao seu posicionamento paleogeográfico, quase em ambiente equatorial, terão tido origem num tempo de elevada temperatura da água do mar. Os mesmos calcários que podem ser observados mais a sudoeste, já bem fora dos Picos da Europa, nas imediações da cidade de Léon. Aqui ergue-se a grandiosa faixa meridional da Zona Cantábrica, que contacta de modo impactante e severa com a depressão associada à cobertura sedimentar da Bacia cenozoica do Douro (FIGURA 5). Em Vegacervera observam-se centenas de estratos verticalizados de calcário, com unidades cavalgadas e dobradas, num conjunto cortado pelo rio Torío que desenha um desfiladeiro estreito e extraordinariamente sinuoso (FIGURA 6)9. No meio das vastas morfologias cársicas, não muito longe, esconde-se a cueva de Valporquero, a mais marcante de toda a região. Aparentemente, sem vestígios de ocupação humana, como a vizinha gruta de Tito Bustillo em Ribadesella, com as suas magníficas e ímpares figuras rupestres. Como não nos deixam captar imagens, fica a da entrada do Centro de Arte Rupestre de Tito Bustillo, “paredes-meias” com os calcários do Carbonífero, e com vistas para subambientes do estuário do Sella (FIGURA 7A)). Com as imagens de sempre, entre estalactites e estalagmites, mais ou menos espetaculares e singulares, a gruta de Valporquero distingue-se, acima de tudo, pelas dimensões das suas salas e da fotogénica porta de entrada, em especial se for ao final da tarde (FIGURA 7B)). No início da primavera, com o começo do degelo, percebe-se a extensão do que poderá ser o rio subterrâneo que por aqui se desenvolve até ao início do verão. Resumidamente, tudo em grande!
Deixamos os terrenos paleozoicos, que não são só de idade carbonífera, e aproximamo-nos da zona costeira. Mais uma vez, devido aos interesses de investigação, que nos levaram até estas paragens, é o Jurássico o motivo principal desta expedição. E que já foram várias. O Jurássico que aflora numa estreita película de terra junto ao Atlântico, bordejando a Zona Cantábrica de Lotze. Os afloramentos e a qualidade do registo fossilífero são tão assombrosos, que aqui foi erguido— no pequeno município de Colunga, o Museo del Jurásico de Asturias (MUJA) (FIGURA 1, 8A) e 8B))10. Um espaço que se alicerça na história geológica jurássica desta região e no vastíssimo registo fóssil, que emana dos vários alcantilados da zona costeira. Na pequena área de afloramentos, mas no amplo intervalo temporal aqui observado, é o Jurássico Superior que parece ganhar maior preponderância. Através do Google Earth, atente-se na arquitetura da cúpula do MUJA, que tem a forma de uma gigante pegada tridáctila de dinossauro. São estes vertebrados, onde se incluem também bastantes réplicas, a imagem de marca do Museu (FIGURA 8B)). De tal modo, que a região é conhecida como La Costa de los Dinosaurios, sendo um tema frequentemente recordado e valorizado em vários locais da região (FIGURA 9).
De natureza siliciclástica e localmente carbonatada, a deposição ocorrida durante o Jurássico Superior terá resultado da ação fluvial meandriforme e de ambientes de transição, como deltas e lagunas de maior ou menor influência marinha. As sucessões sedimentares, datadas essencialmente do Kimmeridgiano, diferenciam-se nas formações de Vega, Tereñes e Lastres11. Grande parte das marcas (pegadas) de dinossauros podem ser observadas nas praias de Merón (Villaviciosa), La Griega (Colunga) e de Ribadesella, numa densidade algo incomum (FIGURA 10)12, 13.
Contrastando com o Jurássico Superior, que nele assenta através de descontinuidade erosiva (FIGURA 11), o primeiro dos “jurássicos”, o Inferior, constitui igualmente um intervalo distinto, muito bem representado nesta pequena bacia— dimensão que diz respeito à sua área restrita de observação onshore.
À semelhança do enchimento da nossa Bacia Lusitânica, em Portugal14, localizada a algumas centenas de quilómetros, ou mesmo do Alto Atlas marroquino15, o Jurássico Inferior das Astúrias é de natureza carbonatada, com preponderância de sedimentos margo-calcários depositados em ambiente marinho de rampa. Um mar epicontinental (raso) que se desenvolveu intra-placa tectónica, bastante antes da abertura do Atlântico Central e Norte, quando a Ibéria e a porção ocidental do norte de África estavam ainda unidas ao continente Norte Americano. A ocorrência de amonoides, em grande parte da sucessão, é o garante de um bom controlo biostratigráfico (o mesmo é dizer, cronostratigráfico), onde é possível identificar, de modo detalhado, os três últimos andares do Jurássico Inferior: Sinemuriano, Pliensbaquiano e Toarciano12, 16, 17. Mas, a toda esta importância estratigráfica, fulcral no exercício da correlação entre bacias sedimentares e na construção dos tão valiosos mapas paleogeográficos, adicionam-se os múltiplos aspetos paleontológicos e sedimentológicos de assinalável relevância científica e didática que aqui podem ser analisados. Damos aqui relevância aos sedimentos ricos em matéria orgânica dos margo-calcários do Pliensbaquiano, que concedem uma cor negra característica à paisagem (FIGURA 12A)). A concentração do conteúdo orgânico é de tal ordem16, assim como as condições de grande soterramento que estas rochas sofreram (a alguns quilómetros de profundidade), terão permitido mesmo a génese de hidrocarbonetos (FIGURA 12B))18. Uma preservação da matéria orgânica que terá sido favorecida por um ambiente marinho particularmente deficitário em oxigénio.
Numa outra escala, e noutra posição estratigráfica, são magníficas as estruturas hummocky (cruzadas de muito baixo ângulo), que podem observar-se no Sinemuriano superior, demonstrativo que esta unidade, durante a sua deposição, terá estado sujeita à ação de tempestades (FIGURA 13A))12. Por outro lado, estando obviamente longe do registo desmesurado e soberbo do Paleozoico de Erfoud19, a quantidade e diversidade de fósseis de invertebrados, bentónicos e nectónicos, é igualmente assinalável, bem como as suas marcas deixadas nos sedimentos, os icnofósseis (FIGURA 13B))20. Amonites, belemnites, braquiópodes, bivalves, gastrópodes e equinodermes, com expressões quantitativas muito diferentes, constituem-se como os elementos paleontológicos mais importantes e recorrentes, que ampliam a imagem paleoambiental. Como registo fotográfico escolhemos um dos exemplos mais raros de observar, do último grupo mencionado, precisamente pelo facto de não ser muito dado à fossilização (FIGURA 14)21. Mais do que a Costa dos Dinossauros, um verdadeiro Parque Jurássico.
E terminamos com um outro local de excelência, tanto no valor paisagístico como científico. O registo estratigráfico do Jurássico Inferior da praia de Rodiles, não muito longe da mais conhecida Villaviciosa, considerada a capital da sidra e da fabada. E do gaiteiro Hevia. Pois, é nos alcantilados de Rodiles que se observa o melhor registo, pelo menos do que se conhece, do evento anóxico oceânico do Toarciano do norte de Espanha22, 23. O evento, e nunca é demais repetir, que é particularmente conhecido em Portugal, pela qualidade do seu registo geológico e pela extraordinária investigação aí realizada14, 24.
Entre todos os lugares da Península Ibérica, Rodiles mostra as melhores evidências que não deixam dúvidas quanto à deposição de matéria orgânica acumulada nos ambientes marinhos em diversas partes do globo, em torno dos 183 milhões de anos (FIGURA 15). A grande variável que permitiu a definição deste evento e reconhecê-lo como um dos mais marcantes de mudança ambiental na história da Terra. Sabendo-se que este acontecimento é atualmente entendido como muito mais do que anoxia, pela sobreposição de vários outros processos abióticos que terão conduzido a uma extinção em massa de 2.ª ordem24.
Está vista uma ínfima parte da riquíssima e variada geologia desta região setentrional da Península Ibérica. Entre outros sítios e registos, dignos de notoriedade, seguramente que muito ficou para ver. E para contar. Mas está na hora de rumar a outras paragens e tentar discernir outras histórias.
Agradecimentos.
Agradece-se a Laura Piñuela, do Museu del Jurásico de Astúrias, bem como a Antonio Goy e a Maria José Comas-Rengifo, da Universidade Complutense de Madrid, pelos ensinamentos sobre o Jurássico das Astúrias.
Referências
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