Entre o norte e o sul da Argentina são mais de 30˚ de latitude que se vão refletir, de forma exemplar, em múltiplas zonas climáticas e nos extremos de temperatura que caracterizam este território. Nesta diversidade climática, para além do efeito de radiação e da pluviosidade que chega à superfície da crosta terrestre, a morfologia tem necessariamente a sua quota de responsabilidade. Esta, é resultado, sem a mínima dúvida, da geologia, da sua geodiversidade, e da sua história evolutiva. A presente curta incursão pelo país das Pampas vai refletir tudo isso, mas circulando junto à faixa andina, já que nas planícies, certamente com muitos outros predicados, não nos iriamos safar… vamos permanecer entre as províncias de Jujuy e de Salta (FIGURA 1), onde não faltam morfologia, montes, cerros e vales, resultado de enrugamentos presenteados pela tectónica, que por aqui é coisa tão séria como na península da Anatólia1. Para mais tarde, e é uma promessa, fica a região de Mendoza, a dos vinhos afamados, a curta distância do gigante Aconcágua. Simplesmente de tirar o fôlego.


FIGURA 1. Localização dos pontos de visita pela região noroeste da Argentina, centrada na cidade de Salta. De notar os alinhamentos estruturais meridianos e as diferenças na orografia e na vegetação. Imagem do Google Earth.

Da multiplicidade de lugares com interesse e impacto geológico da Argentina, sobressai a sua porção noroeste, concretamente a região de Salta. La linda, tal como é conhecida no slogan publicitário. Uma cidade que se orgulha de ter uma das praças do tempo colonial mais bem preservadas do Mundo (FIGURA 2). E é de Salta que sai o mítico tren de las nubes, que circula a mais de 4000 metros de altitude e nos leva pelo altiplano de Puna, que partilha território da Argentina e do Chile, mesmo na vizinhança da Bolívia. Uma paisagem montanhosa que resulta da convergência das placas litosféricas Nazca e a Sul-americana, onde não faltam vulcões ativos e, não esquecendo, as suas originais rochas andesíticas2. Não passaremos por nenhum deles, mas o facto de estarmos nesta porção do globo oferece-nos a ideia de um ótimo enquadramento.


FIGURA 2. Fachada e campanário da Igreja de São Francisco na cidade de Salta. Cenário que sobressai independentemente da hora do dia.

Fortemente influenciada pelos relevos peri-andinos e pela aridez das suas porções mais altas, a Puna3, a região entre Salta e a vizinha província setentrional de Jujuy, destaca-se por um conjunto ímpar de sítios geomorfológicos capazes de captar a atenção e curiosidade do mais distraído em matéria geológica. Um dos tops da geologia desta região, e são vários, é a Quebrada de Humahuaca4. Neste extenso vale profundo, com orientação norte- sul, e que caminha em direção à Bolívia – no sentido contrário ao do Rio Grande que o atravessa –, distingue-se na paisagem, pela paleta de cores das diversas rochas e camadas, um conjunto de unidades que abrange mais de 600 milhões de anos5. Devido aos consequentes e recorrentes processos de sedimentação e de erosão de tão longa história geológica, à tectónica – com falhas e dobras que preenchem o léxico da geologia estrutural –, bem como ao processo erosivo atual, que é seletivo em função das litologias mais ou menos resistentes, ressaltam particularmente neste vale o Cerro de los Siete Colores, em Purmamarca (FIGURA 3) e o Cerro Paleta del Pintor, em Maimara (FIGURA 4). Imagens que se aproximam de verdadeiras aguarelas.


FIGURA 3. Cerro de los Siete Colores em Purmamarca. Combinação de rochas coloridas que se sobrepõem através de falhas e de discordâncias angulares. Ver legenda na FIGURA 5.


FIGURA 4. Cerro Paleta del Pintor em Maimara. Sucessão de estratos inclinados do Cretácico terminal sobre a Quebrada de Humahuaca, recortados por diversos ravinamentos, que dão a ilusão de falsos dobramentos.

Os diversos conjuntos litológicos, a que chamamos de unidades litostratigráficas, mostram rochas metassedimentares (entre quartzitos e xistos) e sedimentares, geralmente de natureza siliciclástica (conglomerados ou ruditos, arenitos e lutitos), de diferente composição mineralógica – que confere a diferente coloração –, e algumas rochas carbonatadas, que se acumularam em períodos muito distintos da história da Terra, e que resultaram da alternância entre ambientes marinhos e fluviais. O registo geológico, datado do Proterozoico terminal, Câmbrico, Ordovícico, Cretácico e o Cenozoico, é prova de ser bastante descontínuo. E estruturalmente complexo, já que se está numa zona particularmente compressiva do globo, demonstrando que determinados intervalos de tempo entre as centenas de milhões de anos mais recentes do planeta (o Fanerozoico), parecem não ter qualquer representação geológica. A começar no Jurássico, tão bem representado em tantas outras paragens por onde andámos. A tectónica de placas explica isso tudo. Tal como o painel da FIGURA 5 esclarece, de modo sumário, o puzzle geológico que se observa em Purmamarca. Já em Maimara, na Paleta del Pintor, pela estrutura monoclinal, a sucessão estratigráfica é mais continua e mais restrita temporalmente, e onde sobressai a Formação Yacoraite. Uma unidade constituída por depósitos litologicamente muito variados, entre carbonatos e rochas siliciclásticas, conhecida internacionalmente pelos seus magníficos estromatólitos. Bem como não faltam registos de outros organismos, entre pegadas dos últimos dinossauros que terão habitado a Terra, já que esta formação incorpora o mítico limite Cretácico-Paleogénico6, 7.


FIGURA 5. Leitor de paisagem do Cerro de los Siete Colores (Purmamarca).

No centro da Quebrada de Humauhaca, Pucará de Tilcara é um outro lugar de referência no seio desta geologia complexa e de uma paisagem que se mantém extasiante. Mas este lugar é conhecido por outras excelentes razões. A começar pelo assinalável sítio arqueológico, pré Inca, assente sobre um depósito quaternário que se ergue no centro do vale do Rio Grande, praticamente na confluência com outras duas linhas de água perpendiculares. Tudo muito geométrico e exposto! Com mistura de diversos povos, os registos arqueológicos disponíveis apontam para uma ocupação, pelo menos desde o século VIII dC8. Paralelamente, destaca-se o pequeno jardim botânico aqui criado, com os cardones que tanto caracterizam este lugar do planeta (FIGURA 6A)). Bem como os lamas, camelídeos, com quem podemos cruzar-nos a qualquer momento (FIGURA 6B)). Há que não esquecer que a Quebrada da Humauhaca, com todas as suas valências, desde a geomorfologia à história, tem a chancela de Património Mundial da UNESCO. Um quase denominador comum destas crónicas. Antes da chegada a Humauhaca, quase na fronteira com a Bolívia, transpõe-se a linha imaginária do Trópico de Capricórnio. Algo já sentido noutras paragens, como o ambiente árido encontrado na Namíbia, mesmo junto ao Atlântico9.


FIGURA 6. Particularidades de Pucará de Tilcara, em plena Quebrada de Humahuaca. A) Um lugar de interesse arqueológico envolvido por cardones e por rochas do Proterozoico (mais escuras, no fundo da imagem), do Cretácico Superior – Miocénico (diferentes unidades de cores mais claras) e o Quaternário (conglomerados de cor cinzenta que se sobrepõem às unidades estratigraficamente inferiores). B) Lamas, um dos muitos símbolos andinos.

Regressamos a Salta, para nos deslocarmos mais para oeste. A ideia é de subir até à cidade de Cachi, no Vale Calchaquí – um planalto da Puna –10, que atinge altitudes acima dos 3300 metros. Com um substrato rochoso neoproterozoico e paleozoico, ígneo-metamórfico11, onde não faltam os alinhamentos estruturais de atitude meridiana, exatamente os mesmos responsáveis pela geomorfologia da Quebrada de Humauhaca. O caminho serpenteia por uma encosta íngreme, uma outra Quebrada, agora a del Escoipe, cheia de cor e de rochas para todos os gostos e onde se vai perdendo gradualmente vegetação. Na Cuesta del Obispo ou na mais alta Piedra del Molino, os níveis de oxigénio começam a fazer cansar o humano menos resistente. Em ambos os locais, obtém-se uma visão perfeita do desnível atingido, e dos efeitos combinados da morfologia, da tectónica e do clima na sedimentação, através de leques (ou cones) aluviais perfeitos, que “escorrem” pelas encostas escarpadas e a esconder as unidades geológicas subjacentes (FIGURA 7).


FIGURA 7. Aspeto do vale do Rio Escoipe, observado a partir da Piedra del Molino, onde ressalta uma série de ravinamentos e de leques (ou cones) aluviais (centro da imagem) tão típicos nesta região peri-andina.

Neste lugar, desfruta-se uma combinação perfeita entre as singularidades desta região andina em termos dos três consagrados reinos da natureza: mineral, animal e vegetal. A geologia está à vista de todos, amplamente favorecida pela altitude e pelo ambiente semiárido. Nestas serranias, surge o Condor andino que, segundo os especialistas, é simplesmente a maior ave voadora do planeta, atração garantida por este lado do mundo. Um dos ícones dos restantes países desta cordilheira, e que, inevitavelmente, nos recorda o El Condor Pasa, seja do original peruano, dos executantes musicais mais rústicos, seja da versão mais globalizada de Simon e Garfunkel. É verdade, não estamos no Peru, cujas paisagens seguramente nos iriam impressionar! Mas a ambiência não será assim tão diferente. E o reino vegetal é igualmente muito particular. Antes de se chegar a Cachi, a estrada transpõe perto de duas dezenas de quilómetros num vale aplanado, a designada reta inca del Tin Tin, a fazer lembrar, pela imensidão, muitos outros cenários. Neste contexto, são os catos os pontos de interesse que compõem o Parque Nacional Los Cardones12, perfeitamente alinhados, como se se tratasse de uma parada militar. A quase ausência de vegetação nas vertentes deste vale, proporciona mais uma paisagem geológica impactante, tão despida, quanto colorida, muito próxima da que está registada mais a norte, em toda a Quebrada de Humahuaca. Do lado ocidental da estrada lá estão as unidades sedimentares do final do Cretácico e da base do Cenozoico (Paleogénico), assentes em discordância angular sobre o Proterozoico13. Com as mesmas cores e numa estrutura com a mesma orientação meridiana, como se estivéssemos na Paleta del Pintor. Quanto aos cardones, estes repousam sobre o Quaternário, e são claramente a marca vegetal de toda a região (FIGURA 8), reveladores do clima que por aqui domina.


FIGURA 8. Parque Nacional los Cardones, nas imediações de Cachi, com os seus catos de braços espinhosos. Ao fundo, o alinhamento das camadas do final do Cretácico – Paleogénico, bastante inclinadas, exibindo uma estrutura muito semelhante à observada na Paleta del Pintor.

Seja em Cachi, Purmamarca ou em qualquer outro povoado deste lado da Argentina, a tez dos humanos, o espírito e a arquitetura são, integralmente, andinos. À semelhança das rochas, a paleta de cores trespassa para o tão apreciado artesanato, com a tapeçaria de “siete colores” e de outros tantos motivos à cabeça (FIGURA 9).


FIGURA 9. Outras imagens do noroeste da Argentina que falam por si. A) Imagem de “marca” de Purmamarca. B) Pintura de parede da cidade de Humauhaca, retratando grande parte da simbologia da região.

É só mais um lugar, único no planeta, que tem muito, mas mesmo muito para conhecer e desfrutar. Aguarda-se o próximo capítulo por solo argentino, agora por terras mais frias.